O Iphan respondeu a uma série
de questionamentos feitos pela vereadora Sandra Batista e pela jornalista Ana
Célia Pinheiro a respeito do “Bechara Mattar Diamond”. As questões e as
repostas do instituto podem ser lidas no blog da jornalista.
Achei que as respostas do Iphan
complicam a situação. Parecem pretender dissimular os problemas que estão
realmente em questão por meio de uma leitura objetivista da legislação em
vigor.
Algumas anotações a respeito:
1. O Iphan declara que aprovou um
projeto sem os obrigatórios EIV (Estudos de Impacto de Vizinhança), previstos no PDU
(Plano Diretor Urbano) e ingenuamente conta com a posterior adoção de “medidas
mitigadoras” para diminuir o impacto que o imóvel causará no centro histórico.
Bom, todos sabemos que não é assim que o mundo funciona. O Iphan é um ator
político com obrigação de defender o Pará, e Belém, no caso, dos interesses
privados que ameaçam sua dimensão cultural e histórica. Espera-se que, no
mínimo, cumpra suas obrigações, exigindo o EIV antes de tomar posição diante de
uma questão com essa magnitude. Para além do mínimo, espera-se que não tenha
uma postura ingênua – para não dizer útil aos interesses contrários à sua
função – de contar com intangíveis “medidas mitigadoras” posteriores.
2. A necessidade do EIV se amplia diante do volume de
tráfego que a finalidade comercial do prédio exige – afinal, não se há de
esperar que usuários de um “shopping charme” sejam, igualmente, usuários do
transporte público de Belém, não é mesmo?
3. Ainda com relação ao EIV, outro elemento que o torna imprescindível
é o fato de que o referido imóvel, se não nos falha a memória, já enfrentou
dois incêndios e que, após o segundo, permaneceu por quase uma década
abandonado, sofrendo as intempéries do clima e da manutenção precária. Esses
fatos podem ter comprometido a sua estrutura. Não haveria aí motivos para uma
demolição? Houve estudos sobre a qualidade das fundações e estrutura do prédio?
E, se houve, quem fez esses estudos? Teria isenção para realizar uma avaliação
independente da cadeia de interesses e parentesco que parece vincular alguns
dos envolvidos na autorização da obra?
4. O projeto integra o “Conjunto arquitetônico, urbanístico
e paisagístico dos bairros da Cidade Velha e Campina”. O Iphan diz,
curiosamente, que ele “integrava” esse Conjunto. O ato discursivo, falho ou
(mal)intencionado, atenua os efeitos nocivos do projeto e mitiga as
consequências da posição do Iphan.
5. O Iphan parece fazer uma leitura parcial e tendenciosa
do Artigo 34 da Lei Municipal 7.709, de 18 de maio de 1994, que, como sabemos,
regulamenta o tombamento do Centro Histórico. O referido Artigo trata “Das
intervenções no centro histórico e na área de entorno” e estabelece uma
classificação dessas intervenções, uma das quais a referida no Inciso V, que
diz respeito à “intervenção destinada à construção de nova edificação e ou substituição
de uma edificação que não tem interesse à preservação”. É o caso do imóvel em
discussão. Porém, esse imóvel, ao contrário do que interpreta o Iphan, não se
encontra isolado: faz parte de um conjunto – e do principal conjunto histórico
da cidade. Ao considerá-lo na sua individualidade, e não no seu contexto – e
sendo esse contexto tão significativo – o Iphan não estaria traindo sua função
social?
Em outras palavras, a percepção correta, mas exclusiva,
de parte da lei, não estaria comprometendo o objetivo da lei na sua
integralidade?
6. Outra questão diz respeito à dimensão do
projeto. A altura do imóvel ultrapassa o gabarito de 7,00m definido pela legislação
municipal para essa área, mas o Iphan não vê problema nisso. Reproduz a lei do
“já que está, fica” – a lei da conveniência universal que assim se transforma
em lei da conivência universal. A justificativa é que “o novo projeto não prevê
a demolição, mas o aproveitamento das estruturas existentes”. Mas como, sem
estudo de impacto, pode o Iphan estar certo disso?
7. Outra interpretação útil da lei, me parece, é a questão do
uso comum da garagem e da área de serviço dos dois imóveis envolvidos no
projeto. Para esclarecer, o projeto envolve dois imóveis do centro histórico: a
antiga loja Bechara Mattar, “bem de renovação”, e o prédio 30 da Rua Tomázia
Perdigão, por sua vez classificado, nos critérios da lei 7.709, como “bem de
reconstituição arquitetônica”. Essa lei, no seu Artigo 35, proíbe todo
remembramento e desmembramento de lote do Centro Histórico. Dizer que os dois
prédios terão usos diferenciados é uma coisa, mas, ao mesmo tempo, afirmar que
farão uso comum da garagem e da área de serviço caracteriza, evidentemente, um
remembramento de imóveis.
Uma garagem e uma área de serviço constituem espaços de
trânsito permanente, de fluxo contínuo. Trânsito e fluxo que integram,
inexoravelmente, os dois imóveis, em termos práticos, por mais que eles,
nominalmente, permaneçam individualizados. Mais uma vez o Iphan parece estar
fazendo uma leitura objetivista e utilitária da lei.
8. Ressalte-se também que o
projeto prevê ampliação do prédio principal. O Iphan chama isso de “complementação de
volumetria”. É uma metáfora para dizer “nova construção”. Por mais que o novo
prédio obedeça ao limite de 7,00m de altura estabelecido pelo Plano Diretor
Urbano para a área, é de supor o impacto que causará, sim, sobre a visibilidade
do entorno. Que tal se o Iphan ouvisse a sociedade a respeito.
Recaímos aqui na questão das audiências públicas. Por que
razão o Iphan não organiza audiências públicas para dialogar com a sociedade,
com os moradores da Cidade Velha, com os comerciantes das proximidades, a
respeito desse projeto?