30 de junho de 2012

A novela do Terminal Hidroviário de Belém

Hoje completa um mês que o Ministério Público Federal do Pará encaminhou, ao Governo do Estado, uma notificação, recomendando que o Terminal Hidroviário de Belém seja colocado em funcionamento em, no máximo, 60 dias. A notificação também demandava, à Secretaria de Estado de Transportes (Setran) e à Secretaria de Estado de Obras Públicas (Seop), que num prazo de 15 dias respondessem ao recomendado, informando que medidas tomariam para que o terminal entrasse em operação.


Trinta dias depois, nada aconteceu. O Terminal Hidroviário, inaugurando pelo Governo do PT, a um custo de R$ 7,5 milhões em recursos públicos, pronto para funcionar, continua desativado. Pior, continua se deteriorando, sem qualquer manutenção.


Vejam algumas imagens de como o terminal se encontra:















Outas imagens desse abandono podem ser vistas na seguinte página, no PRPA.

Como envolve a utilização de recursos federais, o caso poderá parar na Justiça, caso o governo continue em silêncio. Deveria ir parar na justiça. E logo. É evidente que o Governo Jatene evita o funcionamento do Terminal porque se trata de uma obra da gestão anterior. Esse tipo de prática política, com seu evidente desrespeito pelo patrimônio público, deveria ser coibida. O Pará continua a ser governado segundo interesses partidários e eleitorais, com rancor e cinismo.

O Terminal Hidroviário foi entregue em perfeitas condições de uso, pronto para funcionar. Veja-se algumas imagens, de dezembro de 2010:












No documento enviado ao Governo, assinado pelo procurador da República Alan Rogério Mansur Silva, o MPF destaca que a utilização do terminal é extremamente urgente tendo em vista a total precariedade dos outros terminais hidrofluviais da capital. O texto também destaca não haver pendências na Caixa Econômica Federal, órgão financiador do projeto, na Marinha ou mesmo na Secretaria de Estado de Meio Ambiente que impeçam o uso do terminal.

De acordo com Mansur Silva, "a discricionariedade administrativa encontra limites na razoabilidade, tendo em vista que somente pode o administrador deixar de dar a uma obra pública construída a função a que se destinou se estiver amparado em um motivo extremante relevante a ponto de justificar que, embora se tenha dispendido grande quantidade de recursos públicos, o uso da obra possa gerar prejuízo à vida, saúde, segurança, dignidade ou outro bem jurídico que se sobreleve ao patrimônio público”.

Antes do envio da recomendação, a Setran havia sido questionada três vezes pelo MPF para explicar o abandono da obra, mas não apresentou nenhuma resposta.



Aqui, a íntegra da recomendação do MPF-PA. 


A desfaçatez - assim se chama esse tipo da coisa - maior é a proposta do Governo Jatene de construir um "novo terminal hidroviário" - jogando no ralo os R$ 7,5 milhões da obra anterior, todo o trabalho e a expectativa dos paraenses. 

Esse "novo terminal"  foi anunciado pela Agência Pará, no dia 04/05/2011, às 16:59:
Estação Hidroviária – Uma obra de destaque a ser realizada pela Setran, nos próximos anos, é a de construção da Estação Hidroviária de Belém, na Rodovia Arthur Bernardes, projeto de autoria do arquiteto Paulo Chaves, atual secretário de Estado de Cultura, também responsável pelo projeto arquitetônico do Hangar – Centro de Convenções e Feiras da Amazônia.
Os absurdos se multiplicam. As informações do Governo Jatene transmitem certa impressão de capricho, ou de ciúme, como se a necessidade de Belém em possuir um terminal hidroviário se tratasse de um problema de forma, e não de conteúdo. Sugerem que a obra petista não tem "qualidade". Evocam a "grife Paulo Chaves".  


Pior: Não produzindo a resposta demandada pelo MPF, o Governo Jatene produziu, no entanto, uma série de factóides e boatos, todos visando pré-justificar o decisivo abandono do Terminal construído: a profundidade da baía em frente ao Terminal não seria boa (falso: os laudos comprovam o contrário); a construção é de má qualidade (falso: a obra pode não usar os materiais importados e caros das obras de Paulo Chaves, mas nem por isso a qualidade é inferior); o sítio histórico contíguo ao Terminal não teria sido protegido (falso: a proteção do sítio foi garantida e executada, atendendo a recomendação do Iphan e do próprio MPF); o acesso é problemático (falso: a rodovia Artur Bernardes foi recuperada, paralelamente à construção do Terminal). 


É claro, no entanto, que o Governo Jatene vai continuar produzindo boatos e "laudos", para, simplesmente, não usar o Terminal - eventualmente até construindo outro - numa disputa de marcas políticas que não faz sentido e que não devia ser tolerada pela opinião pública.

Ora, tudo isso é muito pequeno, muito medíocre.

Ou não é evidente a necessidade de um terminal hidroviário em Belém?

Pois então: ele está pronto. Foi inaugurado há um ano e meio.








29 de junho de 2012

A crise das cidades


Marcos Bicalho dos Santos, via Agência Globo
29/06/2012

Ao anunciar investimentos de R$ 32 bilhões para projetos de mobilidade urbana nas grandes cidades brasileiras, complementando o montante já anunciado para as cidades-sede da Copa do Mundo, no valor de R$ 11,5 bilhões, a presidente Dilma Rousseff conformou a intenção do Brasil de abandonar a posição de um dos países mais caóticos quando o assunto é transporte público urbano.
A nova realidade brasileira obriga governos e empresas a planejar a implantação e operação de sistemas eficientes e condizentes com o desenvolvimento econômico, social e ambiental. Dos R$ 43 bilhões de investimentos públicos referentes aos PACs da Copa do Mundo e da Mobilidade nas Grandes Cidades, mais de R$ 10 bilhões serão aplicados em sistemas de ônibus, seja em BRT (Bus Rapid Transit), seja em corredores exclusivos.
Se somarmos outras fontes de financiamentos, os investimentos públicos em sistemas de ônibus chegam a R$ 12,5 bilhões até 2016, o que exigirá participação do setor privado da ordem de R$ 8,4 bilhões: R$ 6,3 bilhões em veículos especiais para BRT e para operação em corredores; e R$ 2,1 bilhões em sistemas inteligentes de transporte (ITS), controlados por GPS.
Esse montante aplicado nos sistemas de ônibus urbanos, que há mais de duas décadas não eram contemplados com verbas federais, deverá representar um verdadeiro salto de qualidade para os serviços, o que contribuirá, sem dúvida, para a solução da crise de mobilidade urbana que afeta nossas cidades.
Devido à falta de investimentos na infraestrutura de transportes coletivos e do aumento vertiginoso da frota de automóveis, os ônibus passaram a disputar o espaço viário com os automóveis, caminhões e motocicletas, ocasionando aumento do tempo das viagens e perda de produtividade, com reflexo nos custos e qualidade dos serviços prestados. Isso, aliado à ascensão social da população brasileira, levou os usuários dos transportes coletivos a optar cada vez mais pelo transporte individual, gerando um círculo vicioso com o aumento de congestionamentos e queda de qualidade no atendimento ao cidadão.
Está claro que a solução para a crise de mobilidade urbana passa obrigatoriamente pela requalificação dos transportes públicos. A oferta de transporte coletivo qualificado permitirá alcançar mudanças significativas na matriz modal de viagens. Permitirá também o uso mais racional dos automóveis e, com isso, abrir outro leque de opções para o transporte nas cidades.
Vontade política e a definição de um orçamento para o setor são os primeiros passos para resolver esses problemas, causados por décadas do mais absoluto descaso com os transportes públicos na agenda política brasileira. Medidas simples, como priorizar o transporte coletivo no sistema viário, aliadas à desoneração dos custos do transporte público, são receitas já testadas e capazes de contribuir significativamente para superar a crise de mobilidade urbana, com o desafio de incentivar o uso do transporte coletivo e desestimular o individual.
Desonerar impostos incidentes sobre a tarifa praticada no segmento (que representam mais de 30% dos custos totais das empresas) permitirá que haja maior integração entre todos os sistemas de redes de transportes, hoje limitados àquelas cidades que têm condições de subvencionar os custos desse serviço público essencial. Por si só, a desoneração já representa melhoria na oferta de serviços e é fundamental para solucionar o problema como um todo.
Além disso, a desoneração dos custos setoriais, como o das folhas de pagamento, fortalecerá as condições para a implantação de novos projetos, o aumento da oferta com a expansão de serviços e a geração de novos empregos. Diante do desafio de superar a crise da mobilidade urbana e do momento econômico favorável a esse salto de qualidade, temos a oportunidade de melhorar a situação do transporte público brasileiro. Para que isso ocorra, basta que medidas similares àquelas do Programa Brasil Maior sejam, de fato, consideradas e adotadas para o setor. As primeiras medidas tomadas até agora indicam que estamos seguindo na direção correta.

26 de junho de 2012

A importância das cidades na geografia amazônica


"A Amazônia registrou as maiores taxas de crescimento urbano do país nas três últimas décadas do século 20 e início do século 21: a população urbana representava 37,3% em 1970, 45,9% em 1980, 56,0% em 1991, 69,0% em 2000 e 71,72% em 2007. No entanto, o tema urbano é negligenciado na pes- quisa e na política regional, submerso na onda verde que recobriu a preocupação sobre a Região. No máximo, mostram-se as carências das cidades “inchadas” que são, sem dúvida reais, mas constituem visão parcial, porque as obscurecem como força de desenvolvimento. 
Durante séculos, dominou uma estrutura urbana díspare constituída de núcleos fluviais muito pe- quenos e a primazia de Belém e Manaus. Esta foi rompida no final século 20 no arco Povoamen- to Adensado – a Amazônia desmatada –, onde há várias cidades com mais de 50 mil habitantes próximas às estradas em torno de Belém, ao longo da Belém-Brasília e da Brasília-Rio Branco, até o sul do Acre. Nas áreas florestadas, Manaus mantém a primazia, mas deixa de ser um enclave e um grupamento incipiente de cidades se configura. Cresceram não só as grandes cidades como Belém (2.043.537 hab.) e Manaus (1.612.475 hab.) como algumas com 100-300 mil, 20-50 mil, e muitas com menos de 10 mil habitantes (Fig. 1-1). O crescimento e a multiplicação de núcleos urbanos, contudo, resultou na generalizada escassez de serviços básicos para a população fato que, aliás, não se restrin- ge à Amazônia, mas nela é acentuado. Excluídas Belém e Manaus, a maioria das cidades amazônicas sequer se consolidaram como lugares centrais para a população local e regional, e para desempe- nharem seu novo papel é necessário consolidá-las como tal".

Berta Beker, "Uma visão de futuro para o coração florestal da Amazônia". In: Beker et al. Um projeto para a Amazônia no século 21: desafios e contribuições. Brasília, Centro de Gestão e Estudos Estratégicos, 2009.






23 de junho de 2012

Nova York do futuro, pensada no passado


Em 1908, Moses King publicou o livro King’s Dream of New York, com gravuras que representavam como essa cidade poderia ser no futuro. Com ilustrações de Harry Pettit, o livro retratava uma cidade com vários andares superpostos de avenidas, um espaço aéreo repleto de balões a gás e passarelas para pedestres.

Esse livro foi um marco gráfico e, também, ideológico, pois capturou a imaginação de centenas de arquitetos, engenheiros, escritores, pintores, etc. O futuro virou pop. Visto com os olhos de hoje, é o futuro projetado de uma outra época, mas não deixa de ser o futuro.

Esse marco gráfico é conhecido como "The New York that never was". Uma cidade imaginária e imaginada, em torno da qual se produziu toda uma cultura visual, cultivada durante anos e mesmo décadas. Vejam, por exemplo, o espaço conferido, a essa cultura urbana, pelo jornal New-York Triubune, no ano de 1910:


Não deixo de observar a data: 16 de janeiro, dia do aniversário de Belém... Mas isso é só coincidência. nada tem a ver com o que estou falando aqui. O interessante mesmo é a presença desse imaginário urbano. Moses King, na verdade, constituiu o marco referencial que condensou e nivelou um fluxo de vários modelos futuristas já presentes no imaginário de Nova York. Entre suas fontes pode-se encontrar, por exemplo, o modelo da Railway Sidewalk, uma calçada móvel, que se erguia, ou melhor, ergueria, sobre as calçadas convencionais. Essa invenção foi patenteada em 1871 por Alfred Speer. A calçada andaria a uma velocidade de doze milhas por hora. Vejam só como ela seria:


A mesma fonte de inspiração levou o arquiteto Harvey Wiley Corbett, em 1924, a elaborar um complexo projeto de vias urbanas superpostas, encimadas por calçadas sob a forma de arcadas, para Nova York:



22 de junho de 2012

A solução ambiental virá das cidades?

O fracasso da Rio+20 deixou pelo menos um compromisso diferenciado: o acordo entre os prefeitos de 59 metrópoles mundiais que integram a rede C40 (Cities Climate Leadership Group), que anunciaram a intenção de diminuir em 45% a perspectiva de emissão de gases que contribuem para o efeito estufa até 2030. 

O comunicado fala no potencial de redução de 1,3 bilhão de toneladas, atingindo em 18 anos, quantidade de gases poluentes menor do que se produz hoje. 

Esse consumo equivale, por exemplo, à emissão do México e do Canadá juntos. 

Em 2010, segundo o prefeito de Nova York e presidente do C40, Michael Bloomberg, as cidades do grupo emitiram 1,7 bilhão de toneladas de dióxido de carbono. 

Se nada estivesse sendo feito, estima a rede mundial, a emissão de gases chegaria a 2,3 bilhões de toneladas em 2020 e a 2,9 bilhões de toneladas 10 anos mais tarde.

Aos que se interessarem pelo assunto, sugiro visitar o site do C40.

Em O Globo, li o seguinte:
"O progresso precisa continuar, mas precisamos de um futuro melhor para todos. Os resultados do impacto de emissão de carbono são impressionantes e essas cidades, que representam 14% da pegada de carbono no mundo, têm potencial de redução", explicou Bloomberg, defendendo o caminho da bioeficiência e criticando a falta de apoio dos governos nacionais.

Segundo Bloomberg, os prefeitos têm controle direto sobre 75% das fontes urbanas de emissões de poluentes e critica a posição das esferas superiores de governo. De acordo com o prefeito de Nova York, dois terços das emissões de gases do efeito estufa das cidades do C40 foram pagas sem acordos com governos nacionais. "Os poluentes causam 30% do aquecimento global e as áreas urbanas concentram 80% dos gases do mundo. As cidades não podem mais esperar pelos governos nacionais."

17 de junho de 2012

O Canal Saint-Martin, em Paris: Um exemplo de recuperação de uma área urbana degradada.


O Canal Saint-Martin é, hoje, um dos melhores lugares de Paris. Em geral não é considerado como um dos grandes pontos turísticos da cidade e nem está na maioria dos guias, mas, podem acreditar, é um ponto que vale a visita. Esquecido pelos turistas, é um lugar de convívio dos habitantes da cidade, que afluem, nos finais de semana, para passear, conversar, andar de bicicleta, ler e, simplesmente, estar.


E nem sempre foi assim. Nos anos 1970 era apenas um canal, como os de Belém, para onde confluiam centenas de esgotos. Uma vala fétida, quase sem água. Parte dele estava coberto por ruas. Outra parte, escondido por muros e cercas.


O Conselho Municipal decidiu autorizar a construção, pela Prefeitura, de uma via expressa, com quatro pistas, sobre essa área. E canal estava condenado.


E então a população se mobilizou e exigiu um projeto de recuperação ambiental. E também se opôs à via expressa. Um plano de recuperação do espaço foi, então, executado.


Atualmente é possível pecorrer os dois quilômetros do canal, desde seu encontro com o rio Sena, no porto de Plaisance, Arsenal, até o parque de La Vilette. O passeio é oferecido pela empresa Canauxrama, que possui dois barcos, o Arletty e o Marcel Carné.


O canal possui 9 eclusas e duas pontes móveis, denominadas Pont Dieu e Pont des Granges aux Belles. Uma parte do percurso se dá num túnel subterrâneo, construído ainda no tempo de Napoleão III, em 1862, quando o famoso barão Haussmann era o prefeito de Paris.


A recuperação do Canal Saint-Martin é um exemplo de como se pode restaurar, com funcionalidade, respeito ao meio-ambiente e sensibilidade áreas urbanas degradas.


Imaginem uma cidade como Belém, com tantas bacias fluviais, como não poderia se tornar uma cidade mais bela e melhor para se viver se recuperasse seus canais.


E, mais ainda, se utilizasse seus canais para melhorar o transporte público. Imaginem só: daria para sair de Icoaracy de barco e chegar, pelo canal da Tamandaré, até o Largo da Trindade, a uma quadra da Praça da República! Ou sair da UFPA e chegar até a avenida Júlio César, a quinhentos metros do aeroporto, atravessando a bacia do Una. E tudo isso sem usar ônibus ou carro!






Imagens de joriavlis.

12 de junho de 2012

Memórias da Era da Borracha: Capítulo 5 - Flanar pelo lado esquerdo da cidade

8. Flanas pelos bairros esquerdos cheio de nonchalance.

9. Os sujeitos enunciadores são, agora, outros: o lapidário, o visconde, o anjo, o imigrante, o coronel de barranco, a francesa, a dama na sala, a dama na janela, a moça de tranças, o noivo, o jornalista, o oportunista, a negrinha, o homem do circo, a música que toca, o convidado, o vendedor, o estrangeiro, a índia da memória, Nossa Senhora, a sombra... cartas de um baralho-látex. Ler o futuro.
10. Nos hotéis e nas hospedarias, à hora do jantar, seguia um rumor etéreo. Uma menina enumerava os ferros. Ninguém se espantava.
11. Cada facção de segundo enumerava o resto do mundo - uma alma passava voando; ou duas: nada as sustentava.
12. Há dois milhões de mundos ao redor, e no entanto o quarto... Só e memorioso, como aos pés do minotauro, o moço está sentado na poltrona.
13. Coisas a enumerar: as categorias do efêmero, do transitório e do tributável.
O Guamá macio, um ou mais transeuntes inúteis,
o pão quente do forno de 18 horas,
Uma hostil fotogenia,
Um sideral desejo de morrer.
Em dezembro o tempo devém.
Mas gostaria mesmo era de enumerar os gafanhotos.
Continua amanhã.
Para entender melhor.

11 de junho de 2012

Memórias da Era da Borracha: Capítulo 4 - Milhares de setas


1. Um estojo de ferramentas: a história que passava e passa, o lapidário, reza e meia, lembranças à meia-voz, uma estrutura meio-cogniscente, milhares de setas.
2. As coisas existem é para ferro. Ferro armado, montado, entortado. Entretanto, as coisas têm uma lentidão de nuvem. Mas esquentam com o sol. E o gavião que passa lhes faz sombra de passarinho.
3. As catraias que rangem movimentam um passado feminino. É um inventário: um sortilégio de flores, um galho de baunilha, um avião à jato propulsor, uma avalanche de música, dois sapatos para dançar.
4. Como defender Belém, em seu urbanismo fofo, em suas torrinhas de metal que refletem o chão, em sua ferrugem, cambraia, lentidão e mofo? Como explicar um urbanismo inevitável, que um dia foi alucinado e hoje é uma soma de cataclismos e audições, choques de ruas do passado com ruas do presente? E a casa floreal, como justificá-la, em seu ecletismo indefensável?
5. Ah, contemplar com o ócio... e reciclar o passado. E já o bonde se moveu. Segue lento, desbravando o ar quente de maio. Tu, Observador, és um homem que articulas teus olhos na direção do vento, e que articulas teu corpo inferior sobre paredes. A argila, o cristal, e um folheto sobre a exposição universal. Uma armação metálica pesa sobre ti. Um gasogênio vermelho. Inspiras ozônio vermelho. És um homem com eletricidade.
6. Há três rãs no teu caminho. Elas cruzam a rua fazendo triângulos. Havia uma jazz-band a acompanhá-las. Mas o tempo, ah o tempo, ele não fazia milagres.
7. As mangueiras dariam à cidade uma beleza desordenada. Ergueriam a cidade ao quinto andar, e depois ao oitavo e ao décimo. Te falaram de uma vida desarvorada. E querias esquematizar um tempo que deflui. Vais ombrear em inglês. Talvez serás um cavalheiro.
Continua amanhã.
Para entender melhor.

10 de junho de 2012

Memórias da Era da Borracha: Capítulo 3 - Os seios de látex


Um labirinto no espelho. São seis e meia da tarde, minutos mais, minutos menos. Os passeios da cidade se revezam. Há fantasmas transeuntes (fôra hora da Ave Maria), que caminham nas calçadas e se revezam nas lembrancinhas.
Um absalão. As galerias são de tempo ou são de luzes? A modernidade é feminina. Mulheres, listras, bistras, dorsos, seios... bélica esfera guerra.
Quando em Paris, em 1907, faleceu d. Olympia Paes de Carvalho, já então viúva do dr. Augusto Numa Pinto, a colônia paraense naquela cidade compareceu em peso ao cemitério de Montmartre e a sepultou numa curva da oitava aléa, onde se acostumaram enterrar os paraenses da Era da Borracha. Da dita colônia estavam ali, entre outros, o dr. Miguel de Almeida Pernambuco e d. Amália, o jornalista João Marques de Carvalho, Flávio Corrêa de Guamá e o Conselheiro Samuel Mac-Dowell, que se faria enterrar na mesma curva exatamente um ano depois.
Sim, e também estava ali o comerciante de látex Frederico Parks Pond, americano que adotara Belém por causa de amores secretos, e que colocou sobre o túmulo de d. Olympia uma coroa de flores com os dizeres de praxe - Regrets éternnels - e caiu desmaiado, dando início a uma série de boatos que afirmaram que era pela falecida, mais que pela borracha, que ele vivia em Belém.
Quando d. Alice ten-Brick morreu, louca e vã, acorrentada na galeria do último andar do palacete Bolonha, ali próximo ao antigo Poço do Bispo, à av. de São Jerônymo, boa parte da cidade afirmou ter ouvido durante as madrugadas precedentes os seus gritos e lamentos, e então todos mencionaram certa piedade que teriam tido por ela e recordaram que todo o palacete Bolonha fora construído para ela, pelo arquiteto mais importante da cidade, como um presente de noivado. A todos, igualmente, pareceu improvável continuar acreditando com fidelidade nos diversos temas de amor que grassavam na época.
Quando d. Julieta Martin morreu prematuramente, por causa de um câncer em seus seios, o jornalista João Marques de Carvalho mencionou que fora para ela que cunhara a expressão seios de látex, e recordou o dia em que ela, movida por ciúmes do marido, o engenheiro Ferreira Celso, chefe dos serviços d'água da capital, saiu de sua casa e andou pela ruas completamente despida, apenas com um sapato de saltos altos e com uma sombrinha violeta.
Quando Severa Romana morreu assassinada, por ciúmes infundados de seu marido, o escritor Jacques Flores resolveu escrever a história em forma de peça de teatro, e propôs numa mesa de bar que a função dos poetas seria a de fertilizar as inflorescências. Quando, cem anos depois, a neta do escritor me contava sobre o passado, percebi o que seria de fato a proposta de fertilizar as inflorescências.
Quando a Viscondessa do Arary, d. Catharina Leite Chermont morreu, também em Paris, sua neta Cecília passou mal em Belém, e começou a demonstrar os sintomas que também a levariam a morrer, e isto muito impressionou a segunda esposa do senador Justo Chermont, d. Isabel, que avistou o fantasma de d. Brittes, a primeira esposa, enquanto ele visitava a menina.
Quando morreu em Belém a grande dama que foi d. Laura Joaquina Ribeiro de Figueiredo da Gama e Silva mencionou-se que jamais se vira féretro igual atravessando Santa Izabel e uma chuva lavou a cidade e continuou por mais três dias, até que alagasse o bairro inteiro do Jurunas; e esta enchente ficou anotada num diário que não sei de quem é, mas que vê-se bem ser de uma moça noelista.
Porfim, nas vezes em que era noite de Santo Antônio e em que o tempo mesmo me trazia anacronismos, eu me acostumei a ler em inglês certo gênero de poesia que era de algo romântico e de algo moderno:
"A thing of beauty is a joy forever;
 its loveliness increases; it will never
Pass into nothingness"
Keats.
Continua amanhã.

9 de junho de 2012

Memórias da Era da Borracha: Capítulo 2 - A queda


Na noite de 28 de agosto de 1912 a cidade de Belém do Grão-Pará foi tomada por uma série de acontecimentos surpreendentes. Situa-se, naquela noite, uma chuva de proporções tão gigantescas, que, conta-se, chegou a destruir a todos os vitrais da loja Cúpula de Malquistã. Daquela noite lembra-se, ainda, que a cidade foi invadida por um odor profundo de gerâneos, que a alguns lembrou o odor de cadáveres insepultos e suscitou a hipótese de a chuva ter alagado o cemitério da Soledade, no centro da cidade, e ter trazido os mortos à superfície da terra. Por sinal, foi também a noite de uma festa familiar na qual se viu surgirem de dentro de paredes brancas dois fantasmas, como me foi contado, que prenunciaram vários desassossegos. E ainda, porfim, foi a noite em que o líder oposicionista, o ex-governador Lauro Sodré, sofreu um atentado, enquanto se dirigia em seu coche para assistir a uma récita lírica no Theatro de Nossa Senhora da Paz.
Aí terminava a "Era da Borracha", de forma tão inesperada e rápida quanto foram vertiginosas as folias da sua história privada. A renda per capta da região, que em 1910 fora calculada 323 dólares, para decair, na década seguinte, a 74 dólares, tendo sido superior, na última década do século XIX, aos valores estimados para cidades como o Rio de Janeiro, Boston e Nova York.
No entanto, o monopólio que a Amazônia mantinha sobre a produção mundial de caucho (a seiva milagrosa que modificava o processo industrial de todo o mundo e que equipava indústrias crescentes, como a automobilística) não duraria para sempre. Preocupados com as manobras especulativas que começaram a ser desenvolvidas por exportadores paraenses e portugueses, em 1908, em Nova York, 407 companhias e 231 firmas internacionais formaram a "Rubber Growers Association", que passou a financiar pesquisas e a desenvolver técnicas de cultivo ordenado - na Amazônia, afora algumas poucas experiências, a atividade sempre foi extrativista - com plantações próprias na Malásia.
Essa produção de borracha no oriente subiu de 3 mil quilos em 1900 para 28 milhões de quilos em 1912. Em 1913 alcançou a produção de 48 milhões de quilos e, em 1914, a Malásia produziu mais da metade da borracha mundial, 71 milhões de quilos. Em 1919 a borracha oriental alcançou 90% do mercado mundial, desbancando, definitivamente, a concorrência da produção amazônica.
Não será difícil imaginar o baque que sofreu a estrutura econômica amazônica com a súbita e inesperada queda dos preços. De acordo com Paul Le Cointe, somente na praça de Belém as falências pronunciadas alcançaram o valor de 100 milhões de francos (cerca de 59.524 contos de réis), e isto somente no ano fiscal de 1913. A renda interna da região caiu de 485.833 contos de réis em 1910 (e fora ainda maior nos anos do final do século XIX) para 153.568 contos em 1915.
Alí terminava a "Era da Borracha". Seus mitos e metáforas, no entanto, ainda persistem. Hoje, cem anos depois de alguns dos melhores dias do ciclo, num momento em que a cidade, humilhada, procura referenciais para se reconstituir, é preciso contar muitas histórias. Não sei se uma “Era da Borracha” será a mesma coisa que um “ciclo do látex” cem anos depois. Estas “memórias” modernistas, talvez, permitam que não o sejam. O que seguem, nos próximos artigos, são “memórias” para que sejam inscritas cidades no ar.
Continua amanhã.

8 de junho de 2012

Memórias da Era da Borracha: Capítulo 1 - O Beijo


Vou contar a história de um beijo de cem anos atrás. Era em Belém que ele acontecia e embora fosse bem agosto, aquele tempo, o céu estava carregado com cúmulos cinzentos, como os que envolviam a cidade nos meses chuvosos. Era Belém e chovia. Sebastião tinha vinte e seis anos e Edmée tinha dezessete em agosto de 1912. Os dois estavam na varanda da casa dela e se despediam, e havia no ar da cidade, carregado de mistérios, uma estranha ambivalência de saudades prematuras. Sebastião aproximou seu rosto enquanto Edmée conseguia pensar somente em flores, como me foi contado, e a beijou. Era a primeira vez que se beijavam em dois anos de noivado. Despediram-se em seguida.
Em menos de duas horas, Sebastião embarcava num vapor da companhia "Pará & Amazonas" que estava ancorado no cais inglês - um dos que restaram da imensa frota do Visconde de Santo Elias. Partiu para o Rio de Janeiro um pouco afobado - os acontecimentos na cidade provocavam muitas partidas naqueles dias. Era bem agosto, tudo aquilo, ainda que um céu cinzento, de desejo incasto, envolvesse por cima a cidade, e fosse desenhando, como num sonho, uma contingência de chuvas gigantescas e sucessivas, no mês de maior calor. Edmée jamais tornou a ver Sebastião. Ele partiu da cidade para tentar solver a falência da empresa do seu pai, e, não conseguindo, jamais retornou. Escreveu algumas cartas e certa vez enviou um presente de natal, mas acabou por desaparecer completamente. Aquele primeiro e único beijo entre os dois, no entanto, não foi esquecido, e foi-me contado por algumas amigas de Edmée do tempo em que eram todas senhoritas, e do tempo em que mesmo a cidade era ainda senhorita, e o que seguem, nesta série de artigos, são memórias e sonhos, simplesmente porque não sei se um beijo é só um beijo, cem anos depois.
Ou, talvez, pudesse dizer assim: cem anos depois, uma "Era da Borracha" vai ser só uma "Era da Borracha"... ou não? Será, que hoje, cem anos depois daqueles dias, Belém se livrou dos seus mitos de apogeu, glória, loucura e vigorosa queda? Ou, será que não... Proponho ver que sobre Belém existe outra Belém - imaginária. E que esta Belém imaginária (que precisa ser conhecida) surge daquela outra (dentre outras mais) de cem anos atrás.
O que seguem, são anotações para que sejam inscritos túmulos no ar.
Continua amanhã.

7 de junho de 2012

Este ano Belém completa 100 anos da crise da borracha. Ninguém mais vai lembrar?


Em 2012 Belém completa 396 anos, mas, também, 100 anos da grande crise da borracha, ocorrida em agosto de 1912. Tratei desse tema no meu livro A Cidade Sebastiana. Era da Borracha, Memória e Melancolia numa capital da periferia da Modernidade, lançado em 2010. A data foi dramática. Reproduzo, abaixo, o Prólogo desse livro:

Na noite de 28 de agosto de 1912 a cidade de Belém do Grão-Pará foi tomada por uma série de acontecimentos surpreendentes. A memória oral situa naquela noite uma chuva de proporções tão gigantescas, que, conta-se, chegou a destruir a todos os vitrais da loja Torre de Malakof. Daquela noite lembra-se, ainda, que a cidade foi invadida por um odor profundo de gerânios, que a alguns lembrou o odor de cadáveres insepultos e suscitou a hipótese de a chuva haver alagado o cemitério da Soledade, no centro da cidade, e ter trazido os mortos à superfície da terra. Por sinal, foi também a noite de uma festa familiar na qual se viu surgirem, de dentro de paredes brancas, dois fantasmas, como me foi contado, que prenunciaram vários desassossegos. E ainda, porfim, foi a noite em que o líder oposicionista, o ex-governador Lauro Sodré, sofreu um atentado, enquanto se dirigia em seu coche para assistir a uma récita lírica no Theatro de Nossa Senhora da Paz. 

O autor desse atentado foi identificado como sendo um elemento da guarda pessoal do senador Antônio José de Lemos, o político de maior prestígio na Amazônia de então. A cidade dormiu pouco, e no dia 29 de agosto de 1912, foi às ruas para ler os jornais e ouvir as discussões a respeito do atentado. Líderes oposicionistas incitaram a população e o jornal lemista, "A Província do Pará", acabou por ser invadido e incendiado. A crise política, no entanto, parecia ser um sucedâneo de crises privadas. Naqueles dias todos os estabelecimentos comerciais da cidade estavam em crise, todos os investimentos estavam ameaçados, e todas as felicidades estavam comprometidas. A pequena multidão que protestava no Largo da Pólvora contra o atentado, então, se dirigiu à residência de Lemos e também a incendiou, e o velho senador, aos oitenta anos, ainda de pijamas, foi arrastado e humilhado pelas ruas da cidade, sendo obrigado a se refugiar na casa de seus próprios adversários políticos. 

Aí terminava a "Era da Borracha", de forma tão inesperada e rápida quanto foram vertiginosas as folias da sua história privada. As marcas do período eram evidentes: entre 1860 e 1920 a população de Belém cresceu cerca de 1.200%. De cerca de 18 mil habitantes no final da guerra civil de 1835, passou a contar com um número em torno de 180 mil em 1912. Um crescimento intenso, baseado, principalmente, na imigração portuguesa e nordestina, mas que contou também com fluxos imigratórios espanhóis, franceses e italianos, além de fluxos do interior paraense. A renda interna da Amazônia cresceu, nesse período, em torno de 2.800%. A renda per capta da região, que em 1910 fora calculada 323 dólares, para decair, na década seguinte, a 74 dólares, tendo sido superior, na última década do século XIX, aos valores estimados para diversas cidades da América Latina. 

No entanto, o monopólio que a Amazônia mantinha sobre a produção mundial de caucho (a seiva milagrosa que modificava o processo industrial de todo o mundo e que equipava indústrias crescentes, como a automobilística) não duraria para sempre. Preocupados com as manobras especulativas que começaram a ser desenvolvidas por exportadores paraenses e portugueses em 1908, em Nova York, 407 companhias e 231 firmas internacionais formaram a "Rubber Growers Association", que passou a financiar pesquisas e a desenvolver técnicas de cultivo ordenado - na Amazônia, afora algumas poucas experiências, a atividade sempre foi extrativista - com plantações próprias na Malásia. 

Essa produção de borracha no oriente subiu de 3 mil quilos em 1900 para 28 milhões de quilos em 1912. Em 1913 alcançou a produção de 48 milhões de quilos e, em 1914, a Malásia produziu mais da metade da borracha mundial, 71 milhões de quilos. Em 1919 a borracha oriental alcançou 90% do mercado mundial, desbancando, definitivamente, a concorrência da produção amazônica. 

Não será difícil imaginar o baque que sofreu a estrutura econômica amazônica com a súbita e inesperada queda dos preços. De acordo com Paul Le Cointe, somente na praça de Belém as falências pronunciadas alcançaram o valor de 100 milhões de francos (cerca de 59.524 contos de réis), e isto somente no ano fiscal de 1913. A renda interna da região caiu de 485.833 contos de réis em 1910 (e fora ainda maior nos anos do final do século XIX) para 153.568 contos em 1915. 

Em 1912, quando se prenunciou, no final do mês de agosto, a extensão que as perdas alcançariam, prenunciou-se também o final de toda uma "Era", um período de opulência, fausto e fastígio, de incrível liberalidade nos costumes e de experimentações e maneirismos na vida privada. Nos dias que se seguiram, cerca de 160 estabelecimentos comerciais fecharam as portas. Dias tumultuados, que a memória oral preenche com aparições de fantasmas, dramas individuais e uns sessenta suicídios. Dias que marcaram também a queda dramática de uma oligarquia, a dos "Lemistas", no poder desde 1897 e uma procura nunca antes registrada por passagens de navio e fretes de embarcações. A situação atingia gravemente, também, a administração pública. A prefeitura de Belém devia mais de 2 milhões de libras esterlinas e o governo do Estado devia quase a mesma quantia. 

Ali terminava a "Era da Borracha". Seus mitos e metáforas, no entanto, ainda persistem. E é com base nesses fatos de agosto de 1912, inclusive nas histórias pouco plausíveis sobre os fantasmas, os misteriosos odores de gerâneo e as chuvas torrenciais e inesperadas, que constituo o "evento fundador" que possibilitou a base sígnica das produções discursivas que abordamos neste trabalho.

Ah, o livro está à venda na Fox Vídeo e - fora de Belém - na Livraria Cultura.
Um blog para falar da Belém real e para pensar nos 400 anos que irá completar em 2016. Mas não só: para também falar das beléns imaginárias que nos habitam. Da Belém sebastiana, da Belém da alta goma, da Belém pombalina, da Belém cabana. E mais além: para falar de cidades, de projetos e de sonhos de cidades. Das cidades que desejávamos ser e das que não podemos ser. Dos planos excusos, das vilas invisíveis, das masmorras secretas, de Calvino. Um blog para imaginar identidades, cidades, saudades.